https://expresso.pt/opiniao/2021-07-09- ... a-077d5c1a
Por Nuno Fernandes:
Ronaldo e as ações da Coca-Cola
Não aceitemos um facto como certo. Ter pensamento crítico é necessário mais do que nunca.
Antes da estreia de Portugal no Euro 2020, Cristiano Ronaldo preparava-se para dar uma conferência de imprensa de antevisão do jogo. Dois minutos antes do início, Ronaldo retira as duas garrafas de Coca-Cola colocadas à sua frente e diz “água”, em português, sorrindo aos jornalistas.
Em 2016, a Palavra do Ano do Oxford Dictionaries foi “pós-verdade” (post-truth). A pós-verdade é definida como “circunstâncias em que os factos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e às crenças pessoais”. E, de facto, todos os dias lemos afirmações não suportadas e há um aumento da “opinião” versus factos. Bem como um aumento de notícias falsas.
Estes problemas afetam-nos a todos. Nas redes sociais, a verdade é deliberadamente manipulada e a desinformação é um negócio em crescimento. No último ano, todos ouvimos recém-empossados especialistas em virologia sem quaisquer credenciais ou provas que corroborassem as suas opiniões. Mas, como sabemos, essas opiniões infundadas e que se revelaram erradas foram frequentemente utilizadas como base para a tomada de decisões.
Globalmente, este é um problema vasto. Afeta toda a tomada de decisões pessoais, empresariais, políticas e, em alguns casos, até a democracia.
Ronaldo e o eu saudável
Sendo Cristiano Ronaldo uma superestrela global, as suas ações podem ter consequências. Horas depois de a conferência de imprensa terminar apareceram artigos por todo o mundo sugerindo que a crítica de Ronaldo à Coca-Cola tinha feito baixar em 4 mil milhões de dólares o valor da marca.
Muitos jornais económicos ecoaram o dito facto, citando frequentemente o jornal desportivo espanhol “Marca”, que “analisou os dados da Bolsa de Nova Iorque”. A “Fortune” escreveu: “His shun of sponsor Coca-Cola sent the company’s stock price plummeting.” O “NY Post” disse: “Cristiano Ronaldo’s Coca-Cola snub helped knock $4B off market value.” Outras notícias, simplesmente, não tinham nenhuma fonte e continuavam a repetir a mesma mensagem: Ronaldo provocou uma queda de $4 mil milhões.
Alguns comentadores concluíram mesmo que, neste mundo novo, “um homem de um país relativamente pequeno pode afundar uma multinacional americana”. Outros elogiavam o papel dos influencers e como as empresas os deveriam incorporar nos seus investimentos e planos de marketing.
Infelizmente, como abaixo explico, todas estas provas são simplesmente falsas. E é muito preocupante que jornais supostamente independentes e dignos de confiança as usem como fonte para as suas notícias sobre mercado de capitais e as diferentes implicações empresariais.
O que mais influencia as cotações das ações?
É verdade que Ronaldo tirou duas garrafas de Coca-Cola da mesa em frente às câmaras. Também é verdade que, quando a conferência de imprensa acabou, o valor da Coca-Cola era $4 mil milhões inferior ao do dia anterior. No entanto, outros fatores afetaram a cotação da Coca-Cola, totalmente independentes de Ronaldo.
Facto 1) A Coca-Cola tem 4,3 mil milhões de ações e fechou na sexta-feira 11 de junho com uma cotação de $56,16. Assim, o valor de mercado da Coca-Cola era de $242 mil milhões.
Facto 2) Na segunda-feira 14 de junho, Wall Street abriu às 9h30 (de Nova Iorque, 14h30 em Lisboa), e a Coca-Cola começou em baixa. Após 10 minutos de negociação, às 9h40 de Nova Iorque, a cotação era de $55,26 e o valor de mercado era $4 mil milhões inferior ao do dia anterior.
Facto 3) CR7 mexe nas garrafas de Coca-Cola às 9h43 de Nova Iorque e diz “água”. Quando isso aconteceu, o valor de mercado da Coca-Cola já era inferior ao do dia anterior.
Várias coisas estão por detrás desta queda, e estas não têm nada a ver com CR7. Por exemplo, às 9h40, toda a Bolsa estava a negociar em baixa. Por exemplo, a Ford, que não foi “criticada” por Ronaldo, perdia mais de $2 mil milhões em valor de mercado. As cotações variam, e muitos fatores estão por detrás disso. E, por vezes, é difícil a explicação com um único fator, pois existem outros acontecimentos simultâneos, tornando-se difícil pensar em qualquer relação causal.
Facto 4) A 14 de junho, as ações da Coca-Cola tornaram-se ex-dividendos. Quem detém ações de empresas recebe dividendos em determinados dias. No caso da Coca-Cola, essa data foi anunciada há mais de um ano. Quem detinha uma ação da Coca-Cola no dia anterior ainda tinha direito ao dividendo. No entanto, a 14 de junho, a Coca-Cola torna-se ex-dividendo, e as ações já não têm esse dividendo (já distribuído). Obviamente, nesse dia, as cotações ajustam-se para uma cotação mais baixa. Neste caso, a data do ex-dividendo coincidiu com o dia da conferência de Ronaldo.
Em resumo, quando Ronaldo entrou em cena, às 9h43 de Nova Iorque, a cotação da Coca-Cola já tinha baixado.
Facto final: a cotação das ações da Coca-Cola subiu durante o resto do dia de negociação; desde o momento em que CR7 mudou as garrafas até ao final do dia de negociação em Nova Iorque, o preço das ações da Coca-Cola subiu, acrescentando 1,3 mil milhões de dólares à avaliação.
Porque devemos preocupar-nos com este assunto?
Este exemplo mostra como uma única história é enganadora e sem sentido, a menos que seja suportada por uma análise de dados extensa e robusta. Correlação não é causalidade. E uma única observação casual de um facto não a torna “evidência” ou verdade.
Este tema é obviamente mais vasto do que o desporto e os mercados de capitais. Algumas vezes, estas notícias erróneas são erros de jornalistas inexperientes. Outras, são parte de uma agenda escondida sofisticada. As mentiras espalham-se rapidamente, fornecem desinformação aos leitores, influenciam decisões empresariais e são até usadas para justificar diferentes políticas governamentais. São muito perigosas para nós, como indivíduos, empresas, sociedades e até democracias.
Finalmente, nós trazemos os nossos próprios “preconceitos” preexistentes quando lemos qualquer notícia. O nosso cérebro é treinado para ignorar as coisas que vão contra as nossas visões anteriores. Isto chama-se o enviesamento de confirmação. Se eu gosto de carne, é muito fácil encontrar histórias que dizem que comer carne todos os dias é bom e saudável. No entanto, os vegans podem encontrar as provas opostas. E tendemos a pesquisar e a ler informações de uma forma que confirme as nossas próprias inclinações culturais, religiosas, sociais ou políticas.
O que podemos fazer? O primeiro passo é reconhecer que temos estes preconceitos. Depois, temos de pensar como afetam a forma como lemos as notícias e se acreditamos ou não nelas. Vivemos num mundo de pós-verdade. Não aceitemos um facto como certo. E estejamos cientes dos perigos de aceitar uma única história como prova de um facto qualquer. Ter um pensamento crítico é importante e necessário para os líderes e para os leitores em geral, hoje mais do que nunca.
Professor catedrático no IESE Business School